domingo, dezembro 22, 2024
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Jbook Review #6: Ruas Estranhas – 16 contos de horror e mistério, selecionados por George R. R. Martin


Você não vai encontrar ficção escrita por George R. R. Martin nesse livro. Ruas Estranhas não é um romance, caso tenha passado batido pela informação na capa. É uma antologia, uma coletânea de vários contos com um mesmo tema.

Foi publicada esse ano em português pela Fantasy – Casa da Palavra, novo selo do grupo Leya, editora responsável por trazer as Crônicas de Gelo e Fogo para o Brasil.

Martin e seu parceiro Gardner Dozois convidaram para participar desse trabalho a nata dos escritores gringos de fantasia urbana. Mas o que eles entendem por fantasia urbana não é simplesmente colocar duendes saltitando através das ruas de uma cidade. É uma proposta bastante específica, explicada na introdução que Martin escreveu, intitulada O Bastardo.

A fantasia urbana de hoje é entendida pelo autor como a filha de dois outros gêneros mais antigos. A “mãe” são as história de horror (Para empregar o mesmo termo, mas poderíamos tranquilamente dizer terror. Acho aquela diferenciação técnica entre os dois um porre. )

O “pai” são as histórias policiais e de mistério. Não quaisquer histórias de mistério. A vertente literária americana, mais visceral, mais centrada na figura do detetive durão e na vida das personagens, defendida pelo escritor Raymond Chandler.

Cada autor da antologia tinha como missão criar uma história mesclando esses doisfilões. Ruas Estranhas é um livro que imagina como é ser um policial ou detetive (profissional ou amador, homem ou mulher, humano ou não…) em uma cidade onde vampiros, lobisomens, demônios e outras coisas piores existem.

Existem mesmo?

Aí que está a graça da coisa. A história pode tanto possuir elementos sobrenaturais verdadeiros ou tudo pode ser um crime comum, com uma explicação perfeitamente racional no melhor estilo Scooby-Doo. Essa é uma grande sacada, pois torna a leitura muito mais imprevisível.

Não entregarei grandes spoilers justamente para não estragar a diversão, mas, ao contrário do que fiz com “Branca dos Mortos e os 7 Zumbis”(onde revelar a trama realmente matava a surpresa de muitas histórias) você encontra a seguir  uma pequena sinopse e avaliação de cada um dos 16 contos da antologia.

Assim pode colocar tudo na balança e determinar você mesmo se vale a pena comprá-la ou não.

“Não quero ler isso tudo aí não tio! Resume: Vale ou não vale?” – Tirando três histórias que achei bem dispensáveis, é “da boa”. Se a proposta te atraiu, pode arriscar.

 

   Morte por Dahlia – de Charlaine Harris

Quem é? – A referência mais direta para o público brasileiro é: a autora dos livros nos quais foi baseada a série True Blood da HBO

Sinopse do conto – Vampiros, Lobisomens e Demônios saíram do armário e convivem pacificamente com a sociedade humana nessa realidade. Dahlia é uma vampira muito antiga e poderosa. Ela acaba sendo encarregada de investigar um crime em uma mansão que serve de ninho para os de sua espécie.

O pano de fundo para essa história é um clássico “crime do quarto fechado”.  Um dos participantes da reunião dos vampiros é o culpado pelo crime. Mas quem?

O que achei – Gostei da versão da sociedade vampírica de Harris. É verossímil. (chega ao ponto de incluir detalhes como o fato de Dahlia ser “baixinha”. A imortal nasce numa época que a estatura média das pessoas era bem menor que hoje em dia.) O conto se desenvolve como uma espécie de CSI sobrenaturalonde os sentidos aguçados das criaturas são usados a favor da investigação.

O único porém é que o mistério é um tanto previsível.

   A sombra que sangra – de Joe R. Lansdale

Quem é? – Escritor texano vencedor de uma cacetada de prêmios Stoker e de uma porrada de histórias de western, terror e suspense. Já escreveu para HQs e o desenho animado Batman: The Animated Series.

Sinopse do conto – História de terror no melhor estilo H.P Lovecraft, misturada à mitologia musical do Blues. Um detetive particular vai atrás do irmão de sua ex, um artista doidão que parece ter composto sua música definitiva. Infelizmente, definitiva aqui pode ter mais de um sentido, porque a canção tem o poder de trazer uma entidade maligna para nossa realidade.

O que achei – Em uma palavra? Foda. Esse conto é um excelente exemplo de como empregar bem elementos étnicos numa história. O detetive é negro não só na pele, mas faz parte de um universo cultural que é usado para a ambientação. O conto é impactante e consegue fazer uma leitura nova de uma história já conhecida pelos amantes da música.

   Coração faminto – de Simon R. Green

Quem é? – Escritor britânico da série Nightside e que fez a romantização do filme Robin Hood: O Príncipe dos Ladrões, de 1991. (Que, diga-se de passagem, é um filminho bem mais ou menos, mas parece que o livro vendeu bem!)

Sinopse do conto – Uma bruxa contrata um detetive com poderes sobrenaturais para recuperar seu coração, literalmenteroubado por seu ex-amante.

O que achei – Direto ao ponto e divertido. Um conto estruturado em cima de vários personagens, com interesses conflitantes, que disputam um mesmo objeto. É uma homenagem muito legal ao Falcão Maltês história policial clássica do autor Dashiell Hammett.

   Estige e pedras – de Steven Saylor

Quem é? – Autor conhecido lá fora pela série Roma Sub Rosa que traz o personagem Gordianus, um investigador que soluciona crimes nos tempos de César e Cleópatra, o fim da república romana.

Sinopse do conto – Gordianus e seu amigo Antípatro viajam para a Babilônia, esperando ver algumas antigas maravilhas do mundo, mas tudo que encontram são ruínas. Sua excursão “turística”, porém, toma outro rumo quando ouvem falar de um antigo templo assombrado.

O que achei – É muito interessante como o autor conduz a história mostrando as ruínas de uma civilização antiga para homens de uma civilização que nós mesmos já consideramos antiga (os romanos). Ele parte de uma prática religiosa que realmente existiu na Babilônia para criar uma boa história investigativa.

   Dor e sofrimento – de S.M Stirling

Quem é? – Autor franco-canadense de história alternativa, mais conhecido pela sua série Draka.

Sinopse do conto – Acompanhamos o policial latino Salvador, um veterano da guerra no Afeganistão, trabalhando em um estranho caso de incêndio criminoso na cidade de Santa Fe, no Novo México.

O que achei – Ruim. De longe o mais fraco do livro. Pior que esse conto até começa bem: uma ambientação legal, um recurso narrativo interessante (que são monólogos internos, mostrando para o leitor o que Salvador está pensando) e um clima moderno, com policiais usando a internet pra encontrar dados e cruzar referências.

Mas o final é horrível.

Fica a sensação que o personagem foi completamente inútil na trama, algo paralelo a uma história principal que não aparece em momento algum. É uma tentativa falha de narrar a iniciação de um mortal, como ele “conheceu coisas que não deveria conhecer”. Se encerra com um diálogo tosco fazendo referência ao filme Matrix.

É um excelente exemplo de como NÃO fazer um final aberto (o tipo de final onde virou chavão dizer que “não é preciso explicar tudo”.)

   Sempre a mesma velha história – de Carrie Vaughn

Quem é? – Autora americana da série Kitty Norville, onde a protagonista homônima é uma lobisomem (lobismulher?) que possui uma programa de rádio onde fala sobre criaturas sobrenaturais.

Sinopse do conto – O vampiro Rick, habitante antigo da cidade de Denver, encontra uma velha amiga assassinada. Ele começa a lembrar de quando a conheceu pela primeira vez, trabalhando como barman. No passado está a resposta para o crime.

O que achei – Bom conto. Não é um dos mais empolgantes da antologia, mas é uma história bem conduzida.  Apesar de relatar o relacionamento entre um vampiro e uma mortal não cai na melosidade excessiva. Presta também uma homenagem ao clássico filme Casablanca. (o que é evidenciado nas referências presentes no título, no nome do protagonista e em sua profissão.)

   A dama grita – de Conn Iggulden

Quem é? – Autor britânico de ficção histórica famoso pelas séries O Imperador, baseada na vida de Júlio César, e O Conquistador, centrada na vida Gêngis Khan.

Sinopse do conto – O conto se passa nos E.U.A durante os dias de hoje e é narrado em primeira pessoa. Acompanhamos a vida de um charlatão que diz ser capaz de se comunicar com os mortos. O homem coloca seus serviços ao dispor de pessoas que gostariam de falar com seu entes queridos mais uma vez.

Seu jeito de ganhar a vida muda drasticamente quando ele parece encontrar um espírito de verdade, no porão de uma casa.

O que achei – Iggulden se sai bem com a narrativa em primeira pessoa, faz a gente se identificar com o protagonista (mesmo o cara sendo um escroto) e descreve ao longo das páginas uma profissão com situações bem insólitas. O final da história é um chute no saco. Foi o conto que mais gostei no livro todo.

   Hellbender – Laurie R. King

Quem é? – Autora conhecida por sua série de romances Marry Russell, nos quais uma jovem de origem judaica conhece Sherlock Holmes já aposentado, vivendo como apicultor, e torna-se sua aprendiz.

Sinopse do conto – Um grupo de criaturas denominadas “Salaman” foi revelada recentemente aos olhos da sociedade. São fruto de experiências ilegais de laboratório misturando DNA humano e de salamandras. Esses mutantes foram reconhecidos como cidadãos pelo governo e tentam levar uma existência discreta entre as pessoas. Um detetive Salaman é contratado para investigar um assassinato e descobre que alguém está perseguindo os de sua espécie.

O que achei – Apesar da sinopse parecer meio idiota ou saída de um filme trash de ficção científica, esse conto é excelente. Pega um argumento bem criativo e consegue tratá-lo com realismo. O final também é bastante digno.

Acho que o nome “Salaman” não funciona muito bem em português (eu teria ficado com “Homens-Salamandra”. Embora não seja nem um pouco bonito, pelo menos não parece que se está falando de um super-herói bizarro.)

   Ladrões de sombra – Glen Cook

Quem é? – Autor americano conhecido principalmente pela série A Companhia Negra que fala sobre as aventuras de um exército mercenário. É também o autor da série Garrett Files que traz um detetive particular, vivendo e resolvendo crimes em TunFaire, metrópole de um mundo de fantasia medieval com elfos, anões e outros bichos.

Sinopse do conto – Essa história é ambientada no universo de TunFaire. Traz o detetive Garrett e seus amigos tentando encontrar a origem de uma caixa misteriosa, após serem atacados em sua própria casa por monstros

O que achei – Fraco. Já havia começado a leitura de A Companhia Negra e tinha uma expectativa muito boa quanto a esse autor. Fiquei perdido. Não conseguia entender quem era quem, porque a narrativa em primeira pessoa é intercalada por múltiplos diálogos e não muito descritiva em alguns momentos necessários. O final também não é dos mais satisfatórios.

O universo de TunFaire parece ter personagens interessantes (destaque para o “O Homem  Morto”, um morto-vivo não-humano dotado de poderes psíquicos que atua como parceiro de Garrett), mas esse conto isolado não foi uma boa apresentação.

   Sem mistério, sem milagre – de Melinda M. Snodgrass

Quem é? – Ex-produtora e roteirista de Jornada Nas Estrelas: A Nova Geração. Escreveu também mais uma cacetada de coisas para diversas mídias.

Sinopse do conto – Um homem chamado Cross viaja pelos E.U.A, durante a época da Grande Depressão, com a  missão de fechar uma passagem dimensional. As criaturas que vem para Terra através dessas passagens se alimentam do sofrimento humano, ficando mais poderosas, enquanto os poderes do protagonista vem de sentimentos positivos e raros atos de bondade que as pessoas tem umas com as outras.

O que achei – Boa narrativa aliada a uma mitologia própria muito bem construída. Esse conto é bom, mas fica melhor ainda quando você finalmente entende quem é o tal do Cross!

   A diferença entre um enigma e um mistério – M.L.N Hanover (Daniel Abraham)

Quem é? – Pseudônimo do autor Daniel Abraham. Escreve com esse nome a série Black sun’s daughter. Ganhador do prêmio International Horror Guild. 

Sinopse do conto – Uma mulher foi morta por um sujeito que afirma ter sido possuído por um demônio. O policial trabalhando no caso recebe ordens de seu chefe para deixar um “exorcista” ajudá-lo como a investigação.

O que achei – Muito bom. Personagens bastante humanas, bem construídas num espaço curto de tempo, principalmente o exorcista que foge completamente dos estereótipos usuais. Não sabemos se o personagem é um perdedor completamente amalucado ou alguém realmente muito, muito foda.

O diálogo que da o título ao conto é o ponto alto da história. O enigma é resolvido, mas não o mistério! (Não adianta. Você terá que ler para entender.)

Esse é um exemplo de um bom final aberto.

   O curioso caso do Deodand – de Lisa Tuttle

Quem é? – Co-autora com George R. R. Martin do romance Windhaven, venceu vários prêmios literários voltados para ficção científica como o John W. Campbell de melhor Novo Escritor do Ano (1974), o prêmio Nebula (1981) – que ela recusou devido a uma polêmica sobre o regulamento da premiação –, o British Science Fiction Award (1987) e o International Horror Guild Award (2007)

Sinopse do conto – O começo desse conto poderia ser descrito como uma resposta à pergunta “e se o Dr.Watson fosse mulher?”.Conhecemos Lane uma enfermeira que arranja um trabalho como assistente do detetive Jesperson (um rapaz tentando perseguir a carreira do próprio Sherlock Holmes.). Seu primeiro caso envolve Deodands, nome dado a objetos que causavam mortes acidentais de pessoas e costumavam ser entegues a igreja para serem purificados.

O que achei – Torci um pouco o nariz no começo desse conto. Não gostei muito do Jesperson, afinal ele é um Sherlock versão genérica. Faltou um background melhor para o personagem. De resto, é excelente. Após a introdução, a história é conduzida por Lane e o crime envolvendo os deodands é muito interessante.

   Lord John e a peste de zumbis – de Diana Gabaldon

Quem é? – Autora da série Outlander e diversos romances. Sucesso de vendas no New York Times.

Sinopse – Lorde John Grey é um militar enviado à Jamaica, durante o período colonial caribenho. Seu objetivo é investigar uma estranha revolta de escravos.

O que achei – Não me leve a mal. Esse conto na totalidade não é ruim. Lorde John é um bom personagem (o legal é que sua homossexualidade é abordada pala autora de maneira direta e natural). A ambientação histórica é interessante, o clima é visceral e a construção em cima do mito do zumbi é criativa.

O problema é o ritmo. Arrastado demais para um conto. O mesmo conteúdo, ou mais, poderia ter sido narrado com bem menos.  (Cacoete de romancista?)

   Cuidado com a cobra – de John Maddox Roberts

Quem é? – Autor da série SPQR sobre um membro da aristocracia investigando crimes e mistérios no submundo da Roma Antiga (Pois é. Mais mistério na Roma Antiga. Parece que esse lance é moda lá fora.). Já escreveu romances do personagem Conan, criação de Robert E. Howard.

Sinopse do conto – Uma serpente sagrada desapareceu de um templo na região de Angitia. O sacerdote responsável pelo animal tem uma visão mostrando que a serpente está em algum lugar de Roma. Daecius Caecilus, um brilhante “detetive” romano, recebe uma carta do próprio César pedindo que ajude a encontrá-la.

O que achei – Um conto simples e legal, mais tradicionalmente focado no crime. A resolução do caso lembra aquelas histórias do Sherlock onde você fica “Tá. OK. Como se um humano comum pudesse ter deduzido isso.” (Mas pior que eu QUASE adivinhei a resolução, pegando a pista num detalhe microscópico do texto. Se você for um freak por mitologia e tiver uma grande imaginação, talvez consiga adivinhar no chute.)

   De vermelho, com pérolas – de Patricia Briggs

Quem é? – Autora americana que também já frequentou as listas do New York Times. Escritora da série Mercy Thompson. (sobre uma mecânica que se transforma em coiote, aprontando altas confusões no mundo paranormal!)

Sinopse do conto – O detetive particular Warren Smith (um lobisomem) procura descobrir quem tentou assassinar seu namorado, um advogado com grande senso de justiça, e determinar se o mandante do crime é um antigo desafeto seu ou de seu parceiro.

O conto já vem incluído com zumbis e bruxas.

O que achei – Outro conto excelente. Embora a história envolva um casal de homossexuais, seu relacionamento não é de modo algum estereotipado. Smith pode ser considerado tudo menos “afeminado”. As motivações de todos os personagens são criveis, a tentativa de assassinato é criativa e Briggs sabe levar a narrativa.

   A águia de Adak – de Bradley Denton

Quem é? – Autor americano ganhador dos prêmios John W. Campbell Memorial pelo romance Buddy Holly is alive and well on Ganymede e o Theodore Sturgeon Memorial pela novela Sergeant chip.

Sinopse do conto – A história se passa nas frias ilhas Aleutas (próximas ao Alasca), na época da Segunda Guerra Mundial. Um soldado é enviado por seu superior para investigar a origem de um estranho ritual, feito usando o corpo de um águia.

O parceiro do soldado nessa investigação é o próprio Dashiell Hammett, autor clássico de livros policiais que serviu o exército e foi ele mesmo detetive particular na vida real.

(Sim, tecnicamente isso é um spoiler, mas o leitor teria que conhecer profundamente a biografia do cara para captar esse detalhe. A informação não estraga a diversão, só acrescenta.)

O que achei – O conto fecha a antologia com chave de ouro. É um mistério instigante, num cenário exótico. (Embora o autor force um pouco a barra na resolução). É também, é claro, outra grande homenagem à Hammett.

George R.R Martin. “Ruas Estranhas.” Fantasy – Casa da palavra – 496 páginas. R$ 31, 90.

Davide Di Benedetto
Davide Di Benedetto
Sofre de dependência química de café e podcasts. Graduado em História pela UEMG, especializado em Filosofia pela UFMG e nerd entusiasta de literatura por conta própria. É também o "analista oficial" da série @LeddHQ - www.leddhq.com.br

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