Já se foram 70 anos desde que a bomba atômica foi lançada nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, matando mais de três milhões de pessoas, sem contar as que adoeceram e foram morrendo lentamente anos depois do ocorrido.
Dentre os sobreviventes desse horror, estava Keiji Nakazawa, na época com 6 anos de idade. Ele e sua mãe foram os únicos de sua família que conseguiram escapar e, ao tornar-se adulto, resolveu contar em forma de quadrinhos o que realmente aconteceu em Hiroshima, num relato bem diferente do que os livros de escola sugerem.
Gen – Pés Descalços (Hadashi no Gen, no original) é sua obra-prima e um presente para todos aqueles que não se calam diante dos absurdos cometidos pelos poderosos. É com satisfação que apresento a vocês essa história e, para aqueles que já a conhecem, a revisito.
A história
O ano é 1945. Gen Nakaoka é um ginasial alegre, que vive com seus pais e irmãos em uma casa simples, em Hiroshima. Desde cedo foi ensinado a nunca abaixar a cabeça pro que não acha certo e a viver plenamente, crescendo forte diante da adversidade, assim como o trigo.
Os problemas começam quando seu pai, um artesão pacifista, recusa-se a participar dos treinamentos para a guerra e fala abertamente o quanto discorda da postura do governo japonês diante do conflito, que já se estende há anos. Sua família sofre perseguições de todos os cantos, seja nas humilhações que a irmã Eiko sofre na escola, seja no bullying que os colegas e vizinhos fazem com ele e com seus irmãos, seja na falta de ajuda que sua mãe grávida encontra dos conhecidos apenas porque todos dizem que o patriarca da família Nakaoka é anti-patriota.
Para tentar mudar alguma coisa, o filho mais velho se alista mesmo contra a vontade do pai. O segundo mais velho tem que ir para o interior, junto com as crianças que cursam o terceiro ano ginasial, para ficarem seguras até que a guerra acabe. Gen e o restante de sua família permanecem em Hiroshima, sem saber que esta decisão selaria seu destino.
No dia 6 de agosto de 1945, a bomba atômica cai sobre a cidade de Hiroshima; Gen e sua mãe se salvam por mero acaso, mas o restante da família fica soterrada. Apesar de tentar de todas as formas, mostra-se impossível salvá-los e, obedecendo à última ordem de seu pai, Gen foge para longe dali levando sua mãe grávida e ouvindo os gritos de quem ficou pra trás, queimando no fogo do inferno que Hiroshima se tornou.
Agora, Gen precisará lidar com o fato de que é um sobrevivente e que por isso deverá tomar uma série de decisões que não caberiam a um garoto de sua idade. Sozinho com sua mãe e com sua irmãzinha que acabou nascendo no meio da rua, ele vai lutar para ser como o trigo, que mantém-se de pé mesmo após pisoteado.
A primeira edição
Confesso que tomei um choque quando descobri que a primeira edição de Gen no Brasil estava incompleta. Publicada pela Conrad lá no comecinho da segunda grande onda de mangás no Brasil (por volta de 2000/2001), termina logo depois que o cabelo de Gen cresce novamente e corresponde ao quarto volume da reedição.
Se perder a família daquela forma já não tinha sido cruel o suficiente, Gen ainda teve que lidar com muitos outros eventos nos anos que se seguiram ao fatídico 06 de agosto. Além disso, a primeira publicação de Gen no Brasil foi espelhada e retirada de um projeto chamado Gen Project, o que talvez pode ter contribuído para que os brasileiros não tivessem logo de cara a versão completa da obra.
Os horrores jamais imaginados
Gen – Pés Descalços é uma obra que vai muito além do mero romance histórico e autobiográfico. É um relato visceral do que foi um dos episódios mais lamentáveis da história da humanidade.
Os livros de história jamais fariam jus ao que encontramos neste mangá. Todos sabemos que houve uma bomba atômica e que isso trouxe inúmeros problemas decorrentes do grau de radiação nela contido, mas antes de ler a obra jamais imaginei que quem não morreu no primeiro impacto tivesse passado por situações dignas de um filme de terror.
Pessoas andando pelas ruas de Hiroshima como fantasmas que, ao invés de arrastar lençóis, arrastavam a própria pele; pessoas que não estavam no local e vieram ajudar morrendo num piscar de olhos, tendo uma diarreia violenta e vomitando sangue; os estilhaços de vidro fincados nas pessoas como se fossem escamas macabras; os cadáveres boiando inchados quase que instantaneamente e tornando-se um criame de larvas, em pleno verão… por onde quer que Gen fosse, a morte mostrava seu lado macabro de todas as formas antes inimagináveis.
Para piorar, no meio de todo esse caos, a solidariedade parece ter desaparecido junto com a cidade; a maioria dos que sobreviveram mal podiam ser considerados humanos, e aqueles que ainda tinham condições de ajudar pareciam não ter vontade de salvar nada além de si próprios. Abrigados na casa de uma amiga da mãe de Gen, o garoto passou o inferno, aguentando os maus tratos dos demais moradores da casa e suas artimanhas para expulsá-los.
Aceitando serviços dos mais variados e inusitados possíveis, Gen tentou sempre manter sua cabeça erguida para ajudar o que restou de sua família a sobreviver. O ódio por aqueles que permitiram que a bomba fosse lançada e, acima de tudo, pelo imperador que não foi nada mais do que um covarde, acompanham o garoto por toda a obra, fazendo com que todos nós pensemos no quanto uma gestão arbitrária pode prejudicar tantas pessoas inocentes. Gen Nakaoka é muito mais do que um personagem; é um verdadeiro advogado da paz.
Um autor que não se calou diante das circunstâncias
Keiji Nakazawa escreveu muitos mangás ao longo de sua vida, mas quando finalmente decidiu dividir sua experiência com seu público é que teve maior notoriedade. Com as histórias “Kuroi Ame ni Utarete” (“Sob a Chuva Negra) e “Ore wa Mita” (“Eu Vi”), e depois com a derradeira narrativa Gen – Pés Descalços (publicado a princípio na Shonen Jump), Nakazawa consegue mostrar às gerações que o sucederam todo o horror pelo qual Hiroshima e Nagasaki passaram.
Ouso dizer que o autor ainda vai além: apesar de deixar claro nas falas de muitos personagens que “não fizemos nada para sofrermos desse jeito”, através desses mesmos personagens ele nos faz perceber que não se omite diante de toda a barbárie cometida pelo exército japonês. Ele joga na nossa cara que o Japão foi brutal e cruel com seus vizinhos orientais, China e Coréia (meu maior choque foi tomar conhecimento da operação chamada “Três Tudos”, algo como “matar tudo, pilhar tudo e queimar tudo”); ele escancara a mesquinhez dos japoneses com seus próprios semelhantes, que estavam sofrendo com os efeitos da bomba e eram tratados como monstros apenas por estarem mutilados ou sofrendo sintomas desconhecidos e, como se não bastasse tudo isso, ainda menospreza o jeito japonês de “fazer cerimônia”.
Além disso, ele ainda vai mais fundo na ferida, denunciando os castigos físicos aplicados pelos professores em “alunos problema”; a crueldade das crianças na escola e o pensamento nacionalista exagerado, que muda de lado como quem muda de roupa. As críticas ao governo e à falsa divindade do Imperador são pesadas e as mulheres são personagens fortes, que, longe de precisar de proteção, sabem muito bem o que querem e estão dispostas a ir até o final pelo que acham certo.
A edição definitiva
Desfeito o choque por me sentir enganada com a versão incompleta de Gen, fiquei bem satisfeita com essa segunda edição, a definitiva. Papel durável, sentido oriental de leitura e tradução feita por uma veterana, nossa querida Drik Sada.
Se for pra citar algo que me incomodou, talvez seja esse projeto gráfico de capas nada criativo: cena do mangá + bolinhas com o título e um close qualquer do personagem (tais como Buda e Adolf, este último mais criativo por usar fotos da época), a periodicidade esdrúxula (o primeiro volume saiu em 2011, diga-se de passagem) e o fato deles terem desistido dos subtítulos no quarto volume: se era pra fazer, que fizessem em todos… fora o carnaval nas capas, algo como “aprendi a fazer escala de cores, vejam o efeito que dá na estante”, mas… antes isso do que mais uma edição da Conrad incompleta.
Opinião
Acho que mesmo que eu escreva milhões de linhas, jamais serei totalmente justa com uma obra tão grandiosa como esta; o traço não é nenhuma maravilha, as expressões são exageradas demais e ouso dizer que os milhões de tapas que os personagens dão nas caras um dos outros me irritam bastante, bem como crianças que brigam entre si arrancando as pontas dos dedos do adversário com os dentes, mas esses detalhes são mínimos diante de tudo que Gen – Pés Descalços representa para o mundo.
Este é o tipo de história que te dá a mesma chacoalhada de Maus (não obstante, temos um prefácio de Art Spielgmann no primeiro volume): você vê o relato cru de alguém que realmente esteve no inferno e voltou para te contar como foi. Além disso, também te deixa feliz saber que a Shonen Jump não é a casa apenas de heróis ninjas, deuses da morte, polvos geneticamente modificados, anti-heróis com cadernos que matam ou mangakás adolescentes, mas também de heróis de carne e osso, como este menino que enfrentou tudo de cabeça erguida, mantendo os pés descalços firmes no chão e a pureza no coração que o permitiu sonhar com o futuro, mesmo com a sombra de ser um hibakusha pairando sempre sobre sua cabeça. Leia e emocione-se.