Crítica | “Família” e as consequências da imigração brasileira no Japão

Nesta semana, estreia nos cinemas brasileiros o filme Família, dirigido por Izuru Narushima e com roteiro de Kiyotaka Inagaki. Desafiando o significado do que é ser uma família, o filme explora as consequências do movimento dekassegui após a crise de 2008, escancarando problemas de uma sociedade no Japão que nem sempre chegam ao Brasil.

Com distribuição da Sato Company, o filme traz Koji Yakusho como protagonista, apresentando um Japão muito mais cosmopolita e globalizado do que realmente pensamos ou imaginamos.

Mas você sabe o que é o movimento Dekassegui no Japão?

Família
Personagens japoneses conhecendo uma festa brasileira no conjunto habitacional no filme – Divulgação

O termo “dekassegui” é utilizado para descrever os trabalhadores brasileiros descendentes de japoneses que deixaram o seu país de origem, principalmente o Brasil, para trabalhar no Japão.

A palavra vem de uma combinação de caracteres que significa “trabalhador temporário” e “fora de casa”, refletindo a ideia de deixar o lar em busca de melhores oportunidades.

Sendo um movimento que se fortaleceu nos últimos 30 anos, o dekassegui levou muitos brasileiros a se mudarem para o Japão, formando diversas comunidades brasileiras por lá. Com o auge de 500 mil brasileiros no país, a crise econômica de 2008 a 2009 acelerou o retorno de muitos ao Brasil, reduzindo a comunidade para cerca de 300 mil brasileiros atualmente. Essa crise de 2008 é um dos pilares da construção dos personagens brasileiros no filme o que torna o filme mais próximo da nossa realidade.

A História

O filme começa mostrando brasileiros saindo para trabalhar em diferentes ônibus, numa cidade japonesa. Num cotidiano em que os brasileiros estão inseridos na sociedade japonesa, trabalhando em fábricas, mercados brasileiros, e entre os jovens brasileiros nascidos no Japão e já integrados à sociedade local.

Na trama envolvendo os personagens japoneses, conhecemos Seiji Kamiya (interpretado por Koji Yakusho), um artesão viúvo e solitário que vai à estação de trem buscar seu filho, Manabu (Ryô Yoshizawa) e sua esposa, Nadia (Malyka Ali), que estão de férias no Japão, mas moram na Argélia.

Um dia, ao retornar para casa com o filho, Seiji cruza com Marcos, um jovem brasileiro todo machucado após fugir de uma gangue que atacou uma festa repleta de brasileiros. Morando num conjunto habitacional, Marcos tem um forte senso de justiça e se envolve em problemas com essa gangue, que está disposta a eliminá-lo a qualquer custo. Marcos se esconde na casa de Seiji, que o ajuda e tenta entender a situação. No entanto, Marcos foge para o conjunto habitacional na primeira oportunidade.

Quem tenta quebrar o gelo entre Marcos e a família de Seiji é Eri (interpretada por Fadile Waked), namorada de Marcos, que tenta aproximar os dois lados após os danos causados por seu namorado a Seiji.

Assim, Seiji e sua família visitam uma festa tipicamente brasileira no conjunto habitacional, onde começam a entender por que Marcos é tão revoltado com a vida e conhecem um recorte dos brasileiros que vivem no Japão. Descobrimos que o pai de Marcos foi responsável por trazer diversos brasileiros para trabalhar no Japão, e, após uma crise no país, esses brasileiros foram mandados embora. Cobrado pela responsabilidade, o pai de Marcos cometeu suicídio, deixando uma marca tão profunda que Marcos cresceu rebelde dentro da própria comunidade, num contraste comum em que jovens brasileiros não se sentem nem brasileiros nem japoneses neste Japão atual.

Paralelamente, Manabu revela ao pai, Seiji, que quer pedir demissão na Argélia e voltar para o Japão, abandonando sua carreira para se tornar ceramista como o pai. Manabu quer construir uma família com Nadia. Seiji, porém, se revolta, afirmando que todos na cidade faliram no ramo da cerâmica e que não há futuro ali. Voltar ao Japão para virar ceramista, quando se tem uma carreira de sucesso numa multinacional japonesa na Argélia, não era uma opção.

Manabu decide ouvir o pai e retorna à Argélia, enquanto Nadia descobre que está grávida. Em um contexto dramático, terroristas invadem a usina onde Manabu trabalha, levando o governo japonês a negociar com eles, enquanto Seiji se desespera, vende tudo e tenta pagar o que os terroristas exigem.

Família se concentra em dois núcleos diferentes: Marcos, que perde seu emprego na fábrica após o confronto com a gangue, tenta lidar com os cacos de sua vida e se impressiona ao descobrir a cerâmica de Seiji, vendo ali um possível recomeço.

Enquanto isso, conhecemos a gangue Enomoto, que ataca constantemente os brasileiros na região. Liderada por Kaito Enomoto (Miyavi), o filho mais novo, a gangue revela um extremo ódio pelos brasileiros, pois um ônibus de brasileiros tirou a vida de sua mãe e irmã mais nova. Kaito, intolerante a brasileiros, acaba exigindo que vendam drogas, que mulheres brasileiras se prostituam, desejando o fim dos brasileiros por lá, sendo Marcos, um dos seus principais alvos.

Seiji tenta lidar com as consequências da crise na Argélia, ao mesmo tempo em que vê uma oportunidade de recomeço ao ajudar Marcos e Eri. Ele busca, junto com um policial, desvendar as ações da gangue Enomoto e, de alguma forma, trazer paz para aquela nova família, o que remete ao título do filme.

Opinião

Família é um filme japonês que faz uma leitura precisa da comunidade brasileira no Japão atual e de sua evolução, após momentos bons e também conturbados, como a crise econômica que atingiu o país. Com um elenco brasileiro sem grande experiência em tela, havia algumas reservas sobre as atuações, mas Lucas Sagae, como Marcos, convence muito bem no papel, mostrando um enorme potencial. Já a atriz Fadile Waked rouba a cena como Eri, ganhando projeção no Brasil após ter chamado a atenção do público quando seu nome foi ligado à franquia de jogos de terror Silent Hills.

Por ser um filme que exige um certo contexto para se entender a crise no Japão dos últimos anos (não apenas da comunidade brasileira), Família é um recorte cru do que a sociedade japonesa está vivendo atualmente. E talvez este seja o único problema para um espectador que entra no cinema sem conhecer esse tipo de relação.

Para se ter uma ideia, a gangue Enomoto, que pode lembrar a Yakuza, representa uma evolução das organizações criminosas no Japão. Elas não apenas cobram dinheiro por proteção ou vendem drogas, mas também são proprietárias de estabelecimentos, o que torna a operação da gangue viável. Mesmo que essa explicação seja breve, se você já jogou a série Like a Dragon (anteriormente conhecida como Yakuza), consegue entender o que é apresentado ali. Vale nota aqui que o cantor e ator Miyavi rouba a cena como Kaito Enomoto, fazendo você sentir muito ódio de seu personagem em todo o filme.

O ponto principal do filme é a construção da história de Seiji Kamiya, em que Koji Yakusho rouba a cena, mostrando por que é um dos grandes nomes do cinema japonês. Numa jornada em que o personagem está sem esperanças, o encontro com o filho e, ao mesmo tempo, com Marcos, faz com que Seiji inicie uma jornada de redescoberta, além de não querer mais estar sozinho. Koji entrega uma atuação brilhante, ao trazer um Seiji que perde tudo e entra em confronto direto com Enomoto, ao ver Marcos como parte de sua família.

Exaltando que família não é apenas aquela de sangue, o filme mistura drama tenso com emoção, realidade e uma dose de humanidade. Reflexivo e que faz você pensar na sua própria vida, Família é um filme que vale a pena conferir e, mais importante, refletir sobre.

Nota

4 de 5

Família

Direção: Izuru Narushima

Roteiro: Kiyotaka Inagaki

Produção:  Tomoo Itô

Elenco: Koji Yakusho, Ryô Yoshizawa, Lucas Sagae, Malyka Ali, Fadile Waked

Direção de Fotografia: Jun’ichi Fujisawa

Trilha Sonora: Gorô Yasukawa

Montagem: Hirohide Abe, Ai Sanjô

Gênero: drama

País: Japão 

Ano: 2023

Duração: 121 min.

Agradecimentos a Sato Company pelo convite para assistir o filme

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Giuliano Peccilli
Giuliano Peccillihttp://www.jwave.com.br
Editor do JWave, Podcaster e Gamer nas horas vagas. Também trabalhou na Anime Do, Anime Pró, Neo Tokyo e Nintendo World.

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