domingo, março 23, 2025
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Crítica | O Bom Professor questiona e expõe fragilidade da verdade

Baseado em fatos reais, O Bom Professor chegou aos cinemas brasileiros após chamar atenção no Festival Varilux de Cinema Francês 2024, ao lado de títulos como A Favorita do Rei.

Dirigido e roteirizado por Teddy Lussi-Modeste, o longa se inspira em acontecimentos da vida do próprio diretor, que atuou como professor no nordeste da França e enfrentou uma acusação de assédio feita por uma aluna. O filme, no entanto, não se contenta em apenas narrar os fatos, optando por uma abordagem que provoca reflexões sobre a fragilidade da reputação e o impacto de denúncias precipitadas.

Aqui, François Civil assume o papel de Julien, um professor de francês cuja vida tranquila desmorona quando uma aluna questiona não apenas seu método de ensino, mas sua integridade e vida pessoal. Transformando um ambiente escolar aparentemente comum em um cenário de tensão, O Bom Professor exalta que cada olhar e cada palavra ganham peso.

Mas vamos falar do filme?

O Bom Professor
O clima hostil da escola

A história se passa em uma escola comum, onde jovens interagem normalmente. O professor Julien é respeitado por alguns alunos e busca criar um ambiente em que eles se sintam à vontade para dar as melhores respostas e a se expressar com liberdade. Entretanto, a forma como tenta extrair interpretações na sala de aula acaba sendo mal recebida, o que se torna o estopim para o conflito.

Ao trazer uma leitura sobre o significado do amor e tentar contextualizar com o mundo contemporâneo, Julien elogia um penteado diferente de Leslie (Toscane Duquesne), gerando um desconforto na aluna. A reação de seus colegas apenas amplifica a situação, transformando um comentário aparentemente inofensivo em uma questão séria que não aconteceu.

No dia seguinte, Leslie o acusa formalmente de assédio, pegando a direção da escola de surpresa. A denúncia ganha contornos mais complexos quando ela menciona outros sinais de comportamento inadequado por parte do professor com insinuações que poderiam ter peso se Julien não fosse gay e não tivesse um relacionamento estável com Walid (Shaïn Boumedine), mesmo que reservado e nunca mencionado na escola.

Em uma escalada de tensão, a denúncia evolui para uma investigação formal e a pressão sobre Julien aumenta. Irmão mais velho de Leslie ameaça de diferentes formas, e Walid pergunta por que ele não explica logo que é gay. Encurralado, Julien se vê em um dilema de preservar a sua privacidade ou se defender revelando aspectos de sua vida pessoal.

O filme trabalha bem essa dualidade, explorando a resistência de Julien em se expor a sua vida e a crescente paranoia que o cerca lhe trazendo ansiedade.

O quanto vale a sua integridade?

Walid e Julien

A relação entre Julien e Walid se torna um dos aspectos mais humanos do filme por trabalhar o mundo real deles em casa. Walid insiste para que Julien revele sua orientação e acabe com a acusação de uma vez por todas, mas Julien se recusa, explicando que, no contexto em que vive, manter sua vida privada oculta é essencial para sua aceitação social. A escolha de manter o silêncio, apesar de sua inocência, acrescenta camadas ao personagem e reflete um problema real enfrentado por muitas pessoas LGBTQ+ em ambientes conservadores.

O Bom Professor também evidencia a fragilidade do sistema educacional ao retratar a postura do inspetor da escola, Musil (Francis Leplay). Desde o início, ele evita tomar partido, deixando claro que a escola não pode se voltar contra uma aluna. Quando Julien decide redigir uma defesa por escrito, sua tentativa é rapidamente descartada pelo próprio inspetor, evidenciando o quanto a instituição está mais preocupada com a sua imagem do que com a verdade.

Até que ponto uma escola protege um professor? Numa reunião entre os docentes para decidir se um fundo emergencial poderia ser usado para ajudar na defesa de Julien, a cena escancara a falta de solidariedade entre os próprios professores, com muitos hesitando em apoiar o colega acusado.

Existe um limite entre alunos e professor?

À medida que a investigação avança, Julien se questiona sobre os momentos que poderiam ter levado à denúncia. Leslie menciona um almoço em que ele pagou kebabs para um pequeno grupo de alunos, o que gerou desconforto entre aqueles que não foram convidados. A situação, que deveria ser trivial, é tratada como mais um elemento de suspeita.

Ao fazer um trabalho eficiente ao mostrar como gestos interpretados como aproximação podem ser lidos de outra forma quando colocados sob um olhar acusatório. Julien acreditava estar apenas criando um ambiente confortável para os alunos, mas a narrativa construída contra ele transforma esse comportamento em algo questionável e ainda mais próximo da narrativa de assédio criada pela Leslie.

Mesmo alunos que ele respeitava, como Roxana (Marianne Ehouman), passam a anotar todos os seus movimentos para serem usados na investigação. A sensação de paranoia e isolamento cresce a cada cena, ampliando ainda mais a tensão de ser um caso sem solução.

Arrancado do armário

A relação de Julien com Walid, que já estava fragilizada, entra em colapso quando um vídeo do casal dançando juntos se espalha pela escola. A exposição de sua vida privada gera olhares de julgamento dos colegas e um impacto direto em sua carreira. O filme acerta ao mostrar como a revelação forçada de sua sexualidade não traz qualquer alívio—pelo contrário, apenas o enfraquece ainda mais perante a instituição.

O questionamento aqui é forte: um professor heterossexual passaria por essa mesma exposição? Por que a orientação de Julien se torna um fator de peso na percepção sobre seu caráter? O longa faz essas perguntas sem oferecer respostas fáceis, convidando o espectador a refletir sobre os preconceitos ainda presentes na nossa sociedade.

Discurso de ódio tem solução?

Océane era uma das alunas que não gostava do professor

A hostilidade contra Julien se intensifica de todos os lados, enquanto o irmão de Leslie o confronta verbalmente, desencadeando uma reação explosiva de Walid, que apenas piora a situação. Em paralelo, alunas como Océane (Mallory Wanecque), que não têm bom desempenho na aula, fazem novas acusações, tornando o caso ainda mais nebuloso.

A direção da escola, ao invés de intervir de forma justa, opta por afastá-lo cada vez mais. A impotência de Julien diante dessa espiral de acusações injustas ilustra bem a fragilidade do professor dentro do sistema educacional e quão sozinho ele está em situações assim.

Um filme para levar para a vida

O Bom Professor não se esquiva das consequências de suas temáticas e expõe as falhas institucionais sem amenizar o desconforto do espectador. Ao abordar a exposição involuntária de um professor queer, o longa ressalta como determinados espaços ainda não amadureceram para lidar com a diversidade de maneira saudável.

A escolha de Julien de preservar sua privacidade é plenamente justificável, mas a forma como isso é tratado dentro do ambiente escolar deixa claro o quanto o preconceito ainda permeia o sistema educacional. O roteiro pontua essas questões sem recorrer a discursos didáticos, confiando na inteligência do público para absorver suas nuances.

François Civil entrega uma atuação marcante, equilibrando com precisão as facetas de Julien como o profissional dedicado e o homem que deseja apenas viver sua vida sem interferências. Sua performance é um dos grandes destaques do filme, transmitindo com sutileza o crescente desespero da personagem ao ver suas duas vidas se misturarem no ambiente de trabalho.

Teddy Lussi-Modeste também se sobressai na direção, levando pro filme uma paleta de cores para diferenciar os mundos de Julien. A escola é retratada em tons frios e opacos, enquanto sua vida pessoal exibe cores mais vibrantes, reforçando visualmente o abismo entre os dois espaços que Julien vive. Esse jogo de cores torna claro ao telespectador a sensação de deslocamento do protagonista ao ver seus dois mundos se cruzando.

Sem trazer soluções sobre como escolas lidam com assédios ou professores expostos, O Bom Professor mostra uma França despreparada para essas questões e denuncia a negligência policial em lidar com o caso. Até que ponto a reputação de alguém pode ser destruída sem provas concretas? Como a sociedade lida com professores que não se encaixam em padrões ‘tradicionais’? São reflexões que tornam o longa uma experiência inquietante em que o telespectador levará essa discussão para fora das telas.

Trailer

NOTA: 4.5 (DE 5)

O BOM PROFESSOR

França | 2024 | 91 min. | Drama | 14 anos
 
Título Original: Pas des Vagues
Direção: Teddy Lussi-Modeste
Roteiro: Teddy Lussi-Modeste, Audrey Diwan
Elenco: François Civil, Shaïn Boumedine, Toscane Duquesne
Distribuição: Mares Filmes

Agradecimentos a Mares Filmes por assistirmos o filme para produção deste conteúdo

Giuliano Peccilli
Giuliano Peccillihttp://www.jwave.com.br
Editor do JWave, Podcaster e Gamer nas horas vagas. Também trabalhou na Anime Do, Anime Pró, Neo Tokyo, Nintendo World e Jornal Nippon Já.

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