Polêmico, à frente de seu tempo e censurado pela história, Onda Nova retorna aos cinemas numa versão restaurada em 4K. Lançado em 1983, o filme foi censurado pelo regime militar e, mesmo com cenas antológicas, quase caiu no esquecimento. Agora, essa produção de Ícaro Martins e José Antonio Garcia pode finalmente ser reavaliada com a devida atenção.
Onda Nova está para um dos últimos títulos da pornochanchada, mas subverte o gênero ao trocar a perspectiva masculina por um foco nas personagens femininas. O longa apresenta uma abordagem inusitada para a época, tratando de temas como liberdade sexual e identidade com uma naturalidade surpreendente. Com nudez gratuita e sexualidade fluida, o filme ainda surpreende por trazer participações especiais de peso, como Caetano Veloso, Casagrande, Wladimir, o locutor Osmar Santos, além de Regina Casé e Tânia Alves.
No elenco, Carla Camurati e Cristina Mutarelli se destacam, acompanhadas por Cida Moreira, Cristina Bolzan, D’Artagnan Jr., Ênio Gonçalves, Lucia Braga, Luis Carlos Braga, Neide Santos, Patrício Bisso, Petrônio Botelho, Pietro Ricci, Pita, Regina Carvalho e Vera Zimmermann.
A história

Com o futebol feminino regulamentado no Brasil, conhecemos o fictício Gayvotas Futebol Clube, um time de mulheres jovens que não só treinam, mas também esperam encontrar times para desafiar. No início de tudo, onde tudo era mato, o Gayvotas Futebol Clube nasce em um sítio patrocinado por um clube profissional.
Para começar, um jogo amistoso entre times mistos, mas com homens vestidos de mulher, marca o início da trajetória do time, com Zazá (Cida Moreira), uma motorista de táxi, apitando a partida.
Enquanto isso, conhecemos as personagens, em especial Lili (Cristina Mutarelli), que aposta raspar a cabeça se perder o jogo. O que acaba acontecendo, mas, em vez de ficar careca, ela apenas corta o cabelo bem curtinho.

Entre as outras jogadoras, temos Rita (Carla Camurati), que, além de atleta, é uma chacrete (sim, estamos nos anos 80 e falando do Chacrinha). Rita tem namorado, mas segue curtindo a noite em um bar onde Helena de Tróia (Tânia Alves) canta Vale Tudo, do Tim Maia. Numa alusão ao fim dos gêneros e dos padrões heteronormativos, a personagem Helena brinca enquanto canta: Só não vale. Dançar homem com homem. Nem mulher com mulher. O resto vale., dando uma conotação mais apimentada e estabelecendo o tom do filme.
Vale a curiosidade de que a cantora Helena tem um caso com um ex-jogador, pai da jogadora Batata, que é a melhor do time até então.
Além disso, conhecemos Neneca (Neide Santos), capitã do time, que é casada com Jorge (Olívio Pita), também técnico da equipe. O apartamento deles acaba virando moradia de várias jogadoras, como Lili, que discute com a mãe, foge de casa e vai se abrigar lá. Além dela, Rita também passa a usar o apartamento para transar com o namorado, o que irrita profundamente Jorge, devido à liberdade e à bagunça que tomam conta do lugar.
Cobrando resultados, o time enfrenta a Portuguesa Santista e vence, mostrando que vale a pena investir no Gayvotas Futebol Clube. Mas a vitória traz consequências: Batata transa com um famoso ex-jogador durante a viagem e acaba engravidando. Ela decide abortar e conta com a ajuda das amigas para conseguir pagar pelo procedimento.

É nesse momento que temos uma das cenas mais engraçadas do filme no carro de Zazá, usado pela filha para levantar dinheiro para o aborto de Batata, acaba pegando ninguém menos que Caetano Veloso. Em uma viagem que passa pela Liberdade, pelo Trianon e pelo Minhocão, fica evidente que o destino não importa, mas sim os amassos que o cantor dá na mulher que está com ele, tornando a cena um dos momentos mais inusitados e icônicos do filme.
Enquanto isso, conhecemos melhor Lili, que namora Rui (Petronio Botelho), cujo melhor amigo é Marcelo (Pietro Ricci). Enciumada pela relação dos dois, Lili acaba convencida por Rui a dividir um apartamento com ambos, saindo da casa de Neneca. Mas será que Rui e Marcelo são apenas amigos?
Rita, por sua vez, pega o namorado logo depois de transar com Neneca. Em seguida, termina com ele e, abalada, toma uma série de calmantes na casa da personagem de Regina Casé, o que a leva a um sonho completamente sem noção.

No próximo jogo, Lili sai correndo para um amistoso contra um time italiano. É nesse momento que descobrimos que Rui e Marcelo transam às vezes, com direito a Marcelo experimentando as roupas de Lili. Ao encontrar uma arma, os dois brincam de roleta-russa, acreditando que está descarregada. Mas Rui acaba se matando, deixando Marcelo desesperado.
Desorientado, Marcelo sai correndo atrás de Lili, usando uma saia, mas é impedido por Jorge de falar com ela. Ele então caminha, completamente desolado, pela Marginal Tietê. Rita, ao vê-lo pelo retrovisor, se despede de Onda Nova, sem saber o que realmente aconteceu depois.
Além da restauração

A restauração em 4K realça os detalhes de uma São Paulo que não existe mais. As cores vivas e a nitidez revelam um registro histórico da cidade e do cinema da época, trazendo detalhes que se perderam com os anos.
Não posso deixar de mencionar a cena de abertura, que utiliza lençóis com os nomes do elenco e suas participações especiais, é de uma criatividade absurda e estabelece o tom inovador que o filme apresenta a seguir.
Embora Onda Nova flerte com a pornochanchada, sua abordagem lembra a ousadia de séries contemporâneas como Euphoria e White Lotus. No entanto é difícil imaginar uma nova produção nacional com um elenco tão relevante e reunido em um projeto tão transgressor nos dias de hoje.
Carla Camurati brilha com sua personagem independente, lembrando fisicamente Kim Cattrall na época de Manequim (de 1987). Já Cristina Mutarelli carrega o filme com sua Lili irreverente, garantindo os momentos mais engraçados. Seu desabafo com a mãe (Patrício Bisso) sobre sexo e sua explicação sobre seu nome verdadeiro, Lindóia, mostram sua naturalidade e carisma.
Infelizmente, a ficha técnica do filme deixa a desejar, dificultando a identificação de alguns atores. Rui e Marcelo, por exemplo, protagonizam uma das primeiras cenas homoafetivas intensas do cinema nacional, apenas consegui identificar os atores com as fotos de divulgação, o que quase que injustamente os deixaria eles sem créditos por aqui.

Seja pelo excesso de histórias ou pelo ritmo acelerado, Onda Nova pode confundir espectadores ao apresentar tantos personagens sem tempo suficiente para desenvolvê-los plenamente. No entanto, essa fragmentação também reflete a efervescência da época e temos que analisar que é um filme de 1983 e não um filme de 2025, respeitando seu contexto de época.
Outro charme está na trilha sonora, que inclui Beat It, de Michael Jackson, e diversas referências pop, como um pôster de O Retorno de Jedi (lançado no mesmo ano do filme) na cena de Rui e Marcelo. O cabelo de Rui, visivelmente inspirado em James Dean, adiciona camadas ao personagem, remetendo à sexualidade ambígua do ator americano, numa época que não era tão falado e nem tão pouco discutido.
No fim das contas, Onda Nova pode ter sido considerado “amoral” em seu lançamento, mas hoje se firma como um registro audacioso do cinema nacional. Sua restauração é mais do que um resgate histórico; é uma prova da ousadia que já tivemos e um convite para redescobrir o que o cinema brasileiro pode ser. Seja fã do gênero ou não, Onda Nova merece ser visto e celebrado.
Trailer

Nota: 4 (de 5)
Onda Nova
Roteiro e Direção: Ícaro Martins e José Antonio Garcia
Elenco: Carla Camurati e Cristina Mutarelli; Cida Moreira, Cristina Bolzan, D’Artagnan Jr., Ênio Gonçalves, Lucia Braga, Luis Carlos Braga, Neide Santos, Patrício Bisso, Petrônio Botelho, Pietro Ricci, Pita, Regina Carvalho, Vera Zimmermann
Atrizes convidadas: Regina Casé e Tânia Alves
Participações especiais: Caetano Veloso, Casagrande, Osmar Santos, Wladimir
Produtora: Olympus Filme
Direção de fotografia: Antonio Meliande
Montagem: Eder Mazini
Direção de arte: Cristina Mutarelli
Música tema: Laura Finochiaro e Cristina Santeiro
Trilha original: Luiz Lopes
Produção executiva: Adone Fragano
Produção: Adone Fragano e José Augusto Pereira de Queiroz
Agradecimentos a Pandora Filmes, Vitrine Filmes, Tanto Filmes e a Sinny Assessoria em assistir o filme para produção deste conteúdo.